quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O Miguel

Miguel estava sentado por baixo de um guarda-sol, levava constantemente um pé à boca, como se as suas reacções primárias não tivessem sido desenvolvidas normalmente.
Por mais que tentasse comunicar, essas tentativas falhavam por completo, notava-se então que Miguel tinha um atraso cognitivo: os seus olhos não paravam quietos, bem como o resto do seu corpo; mexia-se em todas as direcções, em direcção a algo que ninguém conseguia ver, algo que provavelmente existiria apenas, e só na sua cabeça, na sua mente. Mas porque estaria Miguel fora do alcance de todos os outros? Provavelmente porque sentiam desprezo. Como pode alguém viver assim?
Miguel parecia ficar desperto enquanto observava os chapéus de praia que balançavam ao sabor do vento. Mas havia algo que lhe chamava profundamente a atenção, havia algo simples, que aos olhos de outros não parecia ser realmente importante, tanto que era transparente…
Poderia Miguel estar a sonhar? Intrigava-me bastante, tentava perceber em que direcção o seu sorriso era direccionado, constatei que a nada, ele, simplesmente, sorria.
Milhares de perguntas apoderavam-se da minha cabeça, ouvia o meu interior a perguntar sobre tudo (os porquês, os comos…).
O único motivo que encontrei  foi o de sermos únicos mesmo que simultaneamente iguais. Haveria então um motivo para o Miguel ser assim, mas qual?
Para Miguel, ver o sol a brilhar era uma tremenda alegria, ver os guarda-sol a baloiçar outra, ver o azul do céu a encontrar-se no infinito com o azul do mar dava-lhe prazer, tanto que era para lá que ele olhava mais vezes, segundo o que eu observava…
Miguel centrava-se no seu corpo, sem dificuldades algumas, descoordenadamente, dirigia (com ajuda dos braços) os pés à boca; emitia pequenos gemidos, como se tivesse a chamar alguém, porém, ninguém parecia ouvi-lo, ou então, fingiam não ouvi-lo…
Porque somos tão diferentes? Interrogava-me e não chegava a nenhuma conclusão, a única conclusão à qual cheguei, quer queiramos quer não, a vida apresenta-nos contrapartidas às quais nada podemos fazer, apenas aceitá-las e vivê-las.  Miguel, era assim uma dessas contrapartidas, aos olhos daqueles que o rodeavam. Ele apenas queria um olhar, bastava que olhassem para si… tanto que gemia constantemente, para chamar a atenção. Miguel após tanto esforço não recompensado, acabou por desistir e voltou a centrar-se no seu próprio corpo.
Apesar, de ninguém olhar para o menino de olhos azuis, ele não desfazia o seu sorriso, nem tão pouco desistia dos seus objectivos, tentava, e voltava a tentar que interagissem com ele.
Ainda hoje, sentada no meu sofá não consigo esquecer o Miguel, os gestos e as atitudes que ele tinha. Recordo ainda, como se fosse hoje, os seus olhos azulados que se dirigiam em direcção ao mar e seguiam cada onda a desenrolar na areia enquanto brilhavam cada vez com mais intensidade.
Existem pessoas especiais, Miguel é uma delas, provavelmente, ou melhor, de certeza que não o irei encontrar mais na minha vida, todavia, posso afirmar, que o episódio do menino dos olhos azuis foi algo que me marcou e que me vai acompanhar em toda a minha caminhada.
Outros Migueis virão, e deixarão marca, porque afinal é disso que é feito o nosso dia-a-dia. As pessoas vão e vêm como as ondas do mar, mas deixam sempre a sua pegada na nossa areia (cabeça), seja ela boa ou má.

Neste texto é Miguel quem nos ensina a sorrir...

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